A definição, o retrato traçado em crônica, não poderia ser mais bem acabado e ter mais competente autor. Quando da morte de Sinhô, dele se ocupou Manuel Bandeira, descrevendo seu velório em detalhes que a um poeta não escapariam: “A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rende-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito (principais ruas do Mangue, a zona do meretrício carioca), mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vai-vem incessante da capela para o botequim”.
Bandeira, que por coincidência conhecera Sinhô em outro velório, o do boêmio e amigo de ambos, José do Patrocínio Filho, sabia muito de quem falava. Desde o primeiro encontro encantou-se com a figura “descarnada, lívida, um frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra”. Reconhecia nele o primeiro compositor a entender que o samba seria a expressão musical da cidade do Rio de Janeiro e ele o seu fixador, o consolidador do trabalho de popularização e profissionalismo iniciado por Donga. Sem maiores luzes intelectuais ou mesmo musicais, Sinhô sempre foi um instintivo iluminado.
Desde cedo avesso ao trabalho, percebeu que teria de tirar seu sustento, da família e das muitas mulheres que cruzaram sua vida, do talento que lhe sobrava e que permitiria fazer da música sua única - e agradável - fonte de renda.
Depois de viúvo e com filhos para criar, dívidas para pagar, tratou de fazer de seu piano a solução que jamais viria pois seria eterno boêmio, mudando de casa, fugindo de credores com a mesma constância com que compunha êxitos cada vez mais populares. Durante o dia fazia plantão junto ao piano da Casa Beethoven, onde executava partituras para possíveis clientes, e à noite podia ser visto nos mais diferentes lugares, tocando em prostíbulos, nas grandes sociedades (Clube dos Democráticos, dos Fenianos, Tenentes do Diabo etc.), em acampamentos ciganos nos subúrbios, no salão da Kananga do Japão, conhecido clube de dança, nas barracas da Festa da Penha ou nas reuniões musicais da casa de Tia Ciata.
Foi essa inquietude, somada à enorme vaidade, que o meteram em sua primeira grande polêmica musical, envolvendo os freqüentadores da casa da “tia” baiana. Sinhô desentendeu-se com China, irmão de Pixinguinha, e atacou logo o grupo inteiro, incluindo, além dos dois, Hilário Jovino e Donga como os baianos de Quem são eles? (A Bahia é boa terra/ela lá e eu aqui...). A resposta foi um samba dos irmãos, desancando o brigão com Já te digo (...ele é alto, magro e feio/ e desdentado/ele fala do mundo inteiro/e já vive avacalhado/no Rio de Janeiro).
Não ficaria por aí a mania de arrumar confusão, que acompanharia o compositor durante toda a sua vida. Pouco depois lança Pé de anjo com grande sucesso e volta a brigar com Hilário Jovino, que se apresenta como o verdadeiro autor da música. Desentende-se com Caninha por causa de um concurso na Festa da Penha e para não ser surrado por Heitor dos Prazeres — altamente respeitado no meio da malandragem — desaparece de circulação por algum tempo. Em 1927, Francisco Alves gravou Ora vejam só, assinada por Sinhô, enquanto Heitor, garantindo ser o autor, parte em busca do outro. Encurralado, Sinhô pronuncia a frase que ficou histórica: “Esse samba eu peguei no ar, Heitor. E samba é como passarinho. É de quem pegar”.
Talvez por não respeitar a propriedade alheia, foi que Sinhô tratou de proteger a sua. E dele a primeira manifestação de exigência de reconhecimento autoral de que se tem notícia no Brasil e feita de maneira simples e direta. As partituras de suas composições levavam um carimbo que as identificavam como suas, e os selos dos discos, com suas músicas, eram por ele rubricados. Revelando uma faceta muito à frente de seu tempo, pagava para que músicos, que tocavam em festas ou bailes, executassem quase exclusivamente músicas de sua autoria.
Obra completa
Achou ruim, faz meio dia, sambinha, 1923; Alegrias de caboclo, canção, 1928; Alivia estes olhos, samba, 1920 ou 1921; Alta madrugada - Adão na ronda, cena cômica, 1930; Amar a uma só mulher, samba, 1927; Amor de poeta, samba-canção, 1930; Amor sem dinheiro, samba, 1926; Amostra à mão, samba, 1930; Ave de rapina, samba, 1930; Bem-te-quero, samba, 1927; Bem- te-vi, canção, 1928; Bem-te-vi, samba carnavalesco, 1927; Benzinho, choro-canção, 1927; O bobalhão, charleston carnavalesco, 1927; Burucuntum, samba, 1930; Cabeça de promessa, marcha, 1924; Cabeça é ás, samba, 1926; Cabeça inchada, marcha, 1923; Cada um por sua vez, sambinha, 1920; Cais dourado, toada, 1929; Canção roceira (Casinha de sapé), samba, 1920; Caneca de couro, samba, 1924; Canjiquinha quente, 1930; Cansei, samba-canção, 1929; Capinheiro (ou Capineiro), coco ajongado, 1929; Carga de burro, samba, 1928; Carinhos de vovô, romance, 1928; Cassino maxixe, maxixe, 1927; Cauã, valsa, 1929; Chequerê, choro, 1929; A cocaína, canção-tango, 1923; Como se gosta, valsa, 1929; Confessa, meu bem, samba, 1919; Confissão, canção, 1927; Confissões de amor, choro-modinha, 1930; Corta a saia (É lá), samba, 1926; Custe o que custar, samba, 1922; Dá nele, samba, 1930; Deixe deste costume, samba, 1919; Deus nos livre do castigo das mulheres, samba, 1928; Dor de cabeça, samba, 1924; Entre nós, samba, 1924; Eu ouço falar (Seu Julinho), samba, 1929; Eu queria saber, samba, 1929; Fala baixo, marcha, 1921; Fala, meu louro, samba, 1919; Fala, macacada, samba-toada, 1930; Falando sozinho, samba, 1927; A favela vai abaixo, samba, 1927; Feitiço gorado, samba, 1930; Força e luz (c/C. Castro), marcha, 1926; Gosto que me enrosco (c/Heitor dos Prazeres), samba, 1928; A guitarra, 1922; Hip! Hurra, marcha, 1924; Já é demais, samba-canção, 1930; Já...já..., samba, 1924; Jura, samba, 1928;Ajuriti, marcha, 1925; Kananga do Japão, polca-choro, 1918 ou 1919; A maçã proibida (c/Bastos Tigre), maxixe, s.d.; Macumba gegê, samba, 1923; Mal de amor, samba canção, 1931; Maldito costume, samba, 1929; A medida do Senhor do Bonfim, samba, 1929; Meus ciúmes, choro-canção, 1931; Miçanga, marcha, 1930; Mil e uma trapalhadas (c/Wilson Batista), s.d.; Minha branca, samba, 1929; Minha paixão, marcha, 1923; Mosca vareja (c/Durval Silva), marcha, 1927; Não posso me amofinar, samba, s.d.; Não quebra mais, marcha, 1927; Não quero saber mais dela, samba, 1927; Não sou baú, samba, 1929; Nossa Senhora do Brasil, dueto, 1929; Ó Rosa, marcha-chula, 1926; Ora vejam só, samba, 1927; O pé de anjo, marcha, 1919; Pé de pilão, marcha, 1922; Pega rapaz, samba-choro, 1926; Por que será ?, marcha, 1930; Professor de violão, samba, s.d.; Quando come se lambuza, samba, 1923; Que vale a nota sem o carinho da mulher?, 1928; Quem fala de mim tem paixão, samba, 1926; Quem são eles?, samba, 1918; Ratos de raça, samba, 1929; Recordar é viver, canção, 1930; Reminiscências do passado, samba-canção, 1930, Sabiá, canção, 1928; Sai da raia, marcha, 1922; Salve-se quem puder, samba, 1930, Segura o boi (De boca em boca), samba, 1929; Sem amor, marcha, 1930; Sempre voando, samba, 1927; Si meu amô me vê, samba, 1930, Só por amizade, samba, 1919; Sonho de gaúcho, canção, 1927; Sou da fandanga, marcha carnavalesca, 1930; Super-ale (c/Ernesto Silva), samba, 1928; Tem papagaio no poleiro, samba, 1926; Tesourinha, samba, 1927; Trabalhando o retrato, samba, 1918; Vida apertada, marcha-batuque, 1923; Virou bola, samba, 1929; Viruta y chicharrón, tango, 1919; Viva a Penha, samba, 1930; Volta à palhoça, samba, 1927; Vou me benzer, samba, 1919 ou 1920.
Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora; História do Samba - Editora Globo.
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