Foto: Sylvia Koscina, João Gilberto, Tom Jobim e Mylene Demongeot
Nas boates Cave e Oásis, em São Paulo, foi lançada, com grande sucesso, a cantora e compositora Maysa Monjardim. A Praça Roosevelt, hoje urbanizada com estacionamentos subterrâneos, túneis, supermercado e outras construções, era então um espaço asfaltado, onde durante o dia estacionava um mar de automóveis, à exceção daqueles reservados à feira livre, ou dos fins de semana, quando lá aconteciam simultaneamente vários jogos de futebol do tipo “pelada”.
Neste terreno atrás da igreja da Consolação funcionava uma espécie de praia dos paulistas em pleno centro da cidade. À noite, o pessoal a atravessava, com saudosas condições de segurança, para se deslocar da Baiúca, onde tocavam, por exemplo, os conjuntos de Pachá, Moacyr Peixoto, Luiz Loy ou do vibrafonista Garoto, até o outro lado da praça, onde funcionou o Delval de Caco Velho, o primeiro Stardust, onde Alan e Hugo tiveram como crooner, por exemplo, Jane Moraes, e como tecladistas Hermeto Paschoal ou Eli Arcoverde.
Neste mesmo “outro lado da praça”, fizeram sucesso o Bon Soir, onde pontificava Walter Santos, ou o Farney’s, que depois virou Djalma, que depois se tornou Zum-Zum e que também entrou na onda dos shows de bolso. Também já faziam a noite paulista Agostinho dos Santos, Maysa e Juca Chaves, que mais tarde participariam dos primeiros espetáculos do gênero realizados na cidade, como o denominado “Festival Nacional da Bossa Nova”, promovido pelo então colunista social Ricardo Amaral, em abril de 1960, no Teatro Record.
Como no Rio, entre as gravações mais curtidas por certo tipo de público que viria a se encantar com a nova Bossa Nova estavam a versão cantada por Chet Baker, de My Funny Valentine, e Cry Me a River, com Julie London acompanhada pelo guitarrista Barney Kessel. Na imprensa e nas rádios, a repercussão dos primeiros discos de Bossa Nova, particularmente o de João, foi evidentemente de perplexidade, entusiasmo, e em alguns casos até de indignação No meio dessas polêmicas, pode-se discutir precedências ou premonições, mas a verdade é que tiveram imediata e entusiástica repercussão em colunas como as de Armando Aflalo ou Adones Oliveira, assim como em programas de disc-jóqueis como Fausto Canova. Henrique Lobo, Fausto Macedo ou Walter Silva.
São desta época duas frases infelizes, não definitivamente esclarecidas ou superadas, mesmo decorridos 35 anos, e que são inevitavelmente lembradas por quem pretenda estender ao campo da Bossa Nova o espírito de rivalidade entre paulistas e cariocas. Uma delas, em sua versão mais suave, foi proferida logo após quebrarem o disco 78 rpm de João Gilberto, e teria a forma de uma pergunta: “Por que gravam cantores resfriados?”. Sua autoria permanece em dúvida, variando do próprio diretor de vendas da gravadora Odeon em São Paulo até o gerente comercial das Lojas Assunção, então a maior cadeia de eletrodomésticos e de discos do país.
A outra, de Vinícius de Moraes, chamava a cidade de “túmulo do samba”, gerando enormes reações a ponto de, em janeiro de 1965, o poetinha ter escrito quatro crônicas para o Diário Carioca, preocupado em esclarecer as circunstâncias nas quais teria sido pronunciada.
Segundo ele, o comentário fora endereçado a Johnny Alf, para fazer desaforo a um grupo de grã-finos que estavam bêbados, na boate Cave, e comentaram em voz alta que aquele “cara” desafinava e “não tocava coisa com coisa”. Curiosamente, foi nestes artigos, sob o título de “SP não é mais o túmulo do samba”, que pela primeira vez ele fez referência a certo futuro parceiro, “Chico (..) (filho de meu querido amigo o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda) cujos sambinhas são muito bons”.
Entre as respostas à ofensa do poeta, a de um grupo de artistas e jornalistas paulistas, ou lá radicados, foi promover “reuniões de bossa”, que aconteciam em residências como as do maestro Souza Lima, de Renato Mendes ou de Maricene Costa, sempre aos sábados à tarde. Faziam parte desta turma, entre outros, Theo de Barros, Alaíde Costa, Claudete Soares, César Mariano, Walter Wanderley, Yvette, Adones Oliveira, Alberto Helena Jr., Franco Paulino, Luiz Vergueiro, Solano Ribeiro e Moracy do Val. Alguns destes últimos, a partir de janeiro de 1963, passaram a produzir “noites de Bossa”, às segundas-feiras no Teatro de Arena, porque não dava mais para reunir em residências particulares todo o público interessado em participar desses encontros.
Mais tarde ainda, os mesmos produtores promoveram espetáculos musicais no Teatro Maria Della Costa, inclusive uma releitura de Orfeu do Carnaval, que havia vencido em 1954 o concurso de textos teatrais inéditos, por ocasião dos festejos do IV Centenário de São Paulo. O papel principal coube a Agostinho dos Santos.
Paralelamente aos shows, de palco e de arena, e também aos espetáculos em faculdades, que continuavam a mobilizar a geração mais jovem em torno da nova música brasileira, um outro grupo, liderado por Márcio Martins Moreira, mais tarde prestigiado publicitário nos Estados Unidos, se apresentava na rede de teatros de bairro mantida pela Prefeitura. Eram shows à luz de velas, que reuniam, entre outros, os compositores, cantores e violonistas Sérgio Augusto e Zelão, o pianista Nelson Ayres e a cantora Sonia.
Entre essa fase, de shows na escala da casa noturna, do auditório de universidade, dos teatros pequenos e médios, e a era dos grandes espetáculos no Teatro Paramount e na TV Record, merece citação especial O Fino da Bossa, que causou uma mudança de rumo na forma e talvez no conteúdo desses eventos. Este foi realizado em maio de 1964 e teve seu título utilizado posteriormente para um programa semanal de televisão, na Record, estrelado por Elis Regina.
O teatro, com capacidade da ordem de 1.800 espectadores sentados, ficava na contramão da convencionada região musical da cidade, isto é, estava localizado do lado contrário ao da Praça Roosevelt, no fim da Brigadeiro Luiz Antonio, próximo à Praça da Sé e ao Largo de São Francisco, Era proposta de seus organizadores — um grupo do Centro Acadêmico XI de Agosto, liderado por Horácio Berlinck Neto e Eduardo Muylaert e reunindo universitários de diferentes formações — realizá-lo em padrões o mais que possível profissionais. Todos os artistas seriam formalmente contratados, pois os organizadores eram todos estudantes de Direito — canções inéditas seriam incluídas, com arranjos especiais, e o evento seria registrado em disco LP a ser comercializado imediatamente após sua realização. A direção musical coube a Oscar Castro Neves, também autor de Onde Está Você?, em parceria com Luvercy Fiorini, que foi interpretada por Alaíde Costa, acompanhada por um noneto, constituindo-se na faixa principal do referido disco.
As circunstâncias, inclusive o elenco, o local e a expectativa criada levaram o grande teatro a ficar superlotado, com o público excedente chegando a quebrar as portas na tentativa de assistir o espetáculo. Participaram ainda o recém-criado Zimbo Trio, Rosinha de Valença, Nara Leão, Jorge (então) Ben, os trios de Sérgio Mendes e de Edson Machado, Wanda, Ana Lúcia (estas duas, também acompanhadas pelo noneto de Oscar), Paulinho Nogueira, Claudete Soares, Marcos Valle, Os Cariocas, Geraldo Cunha, Luiz Henrique e Walter Wanderley, tendo o disco encabeçado por alguns meses as listas de vendagem no País.
A partir dali, aquele espaço foi assumido como novo “templo da Bossa em São Paulo”, mudada a escala desses eventos, alteradas as relações entre artistas e promotores, e aberto novo mercado — o dos shows ao vivo — para o grande mercado fonográfico. Toda uma série de espetáculos seguiu-se ao Fino, comandados por Walter Silva, o Pica-pau, responsável, entre outros, pelo Samba Novo, Mens Sana in Corpore Samba, Bo-65, O Remédio é Bossa, Historinha, Primeira Denti-Samba e outros, alguns registrados em disco com grande sucesso, como o Dois na Bossa, que manteve por algum tempo o recorde de vendagem de disco nacional.
Ampliava-se o sucesso da música popular do Brasil. Porém essa nova escala tenderia a levar ao afastamento de alguns traços e características fundamentais do movimento da Bossa Nova, entre os quais o intimismo.
Como no Rio, as novidades da Bossa Nova eram freqüentemente geradas e difundidas em casas e apartamentos de universitários, gente da classe média, como Horácio Berlinck Neto e João Evangelista Leão, nos Jardins; Caetano Zama, que morava na região da Paulista, ou Ana Lúcia e Miúcha Buarque de Holanda, no Pacaembu. A mansão dos Berlinck, na Rua Itália, contava com todos os itens necessários a reuniões deste tipo — piano, bateria, contrabaixo, violão. “Minha mãe, tia Helena, era um barato. Recebia todo mundo, dava casa, comida e roupa lavada. Passei momentos inesquecíveis ali”, recorda Horácio. Primo da cantora Wanda Sá, volta e meia ele ia para o Rio, onde também participou de várias reuniões nas casas de Nara Leão e de Chico Feitosa e Ronaldo Bôscoli.
Por volta de 1960, Horácio foi trabalhar como programador musical na Rádio Eldorado, “Ali, a gente tinha um gosto musical muito apurado”, afirma ele, que mais tarde coordenou o espetáculo O Fino da Bossa, no Teatro Paramount. Foi um dos produtores de Primeira Audição, no teatro do Colégio Rio Branco e na TV Record, onde também participou da produção do programa de Elizeth Cardoso (Bossaudade) e do de Elis Regina, Zimbo Trio e Jair Rodrigues, com o mesmo título daquele show do Paramount.
Quando Horácio deixou a emissora, o programa passou a chamar-se simplesmente O Fino, onde foi diretor cultural numa época em que lá era freqüente a presença de artistas como Dick Farney, Isaurinha Garcia, Vinícius, Paulinho Nogueira, Johnny Alf, Geraldo Vandré ou Ana Lúcia. Foi durante cinco anos produtor do talk show de Silveira Sampaio, o mais importante da época, programa que “batia papo com gente desde cangaceiro até astronauta, de travesti a presidente, e com muitas personalidades da música.
Naquele tempo, a turma da Bossa era uma fonte inesgotável...”. A casa de Evangelista, na Rua Cuba, assim como seu sítio em Jundiaí eram pontos de encontro de longas e animadas reuniões musicais, principalmente durante a época dos musicais da Record, dos quais participou, assim como Horácio Berlinck, da produção, ao lado da Equipe A (Tuta Carvalho, Nilton Travesso, Raul Duarte e Manoel Carlos) e de Zuza Homem de Mello, que aliás era contrabaixista de jazz durante os anos de início da Bossa Nova. Pesquisas de repertório, ensaios, montagem de números especiais ou garimpagem de novas músicas e músicos, tudo era pretexto para que as casas de Leão e de Horácio estivessem sempre cheias de gente, como os músicos do Zimbo, Elis, Cyro Monteiro, Alaíde, Fernando Faro, Arley Pereira, Chico, Toquinho, os baianos e os militantes da política universitária.
Já a mansão da família Zammataro, na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, perto da Avenida Paulista, era base paro encontros do pessoal da música e também do teatro paulista. Seu filho mais velho, Caetano Zama, estudava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e também na Escola de Arte Dramática (EAD), de Alfredo Mesquita, além de compor, cantar e tocar violão, tendo constituído com Agostinho dos Santos e Ana Lúcia o trio de paulistas que participou do recital do Carnegie Hall. Sempre havia disponível um quarto de hóspedes para albergar o pessoal bossa-novista que vinha do Rio, como Sergio Ricardo ou Oscar Castro Neves.
João Gilberto era hóspede freqüente, mas preferia dormir na sala. Foi lá que João mostrou, pela primeira vez em São Paulo, sua interpretação de Insensatez. São muito lembradas até hoje as reuniões de sábado à tarde e os reveillons dos Zama, onde conviviam Agostinho dos Santos, Maysa, Flavio Rangel, Gianfrancesco Guarnieri, Alaíde Costa e Maria Lima, Aracy Balabanian, Juca de Oliveira, Vandré, Roberto Freire e muitos outros.
Psicanalista e professor da EAD, Freire foi o primeiro parceiro de Caetano Zama (Mulher Passarinho, de 1958) e, anos depois, mentor do grupo teatral da PUC que montou Morte e Vida Severina, ganhando o Festival de Nancy de Teatro Universitário (1966).
Ana Lúcia gravou seu primeiro disco nos primórdios do movimento. Com composições de Tom Jobim e arranjos de Guerra peixe. Lembra que seu primeiro contato com a Bossa Nova foi através do disco Amor de Gente Moça, de Sylvinha Telles. Encantada, resolveu tentar a carreira participando dos programas da TV Tupi Almoço com as Estrelas e Clube dos Artistas, onde foi vista por Agostinho dos Santos, que a estimulou a continuar cantando. Seu apartamento na Rua Piauí, em Higienópolis, era outro ponto de encontro da turma.
Foi lá que aconteceu uma famosa história de João Gilberto, quando ele, irritado com o relógio de parede que cantava a toda hora, parou de tocar e só voltou ao violão depois que pararam o funcionamento do cuco.
Quanto à casa do professor Sérgio e de Maria Amélia Buarque de Holanda, na Rua Buri, perto do Estádio do Pacaembu, sempre foi local de encontro de intelectuais. Quando começou o movimento da Bossa Nova, Heloísa (Miúcha), sua filha mais velha, tocava violão e cantava, com repertório que ia desde Noel Rosa até Vinícius de Moraes e Paulo Vanzolini, estes últimos freqüentadores assíduos da casa. Os sucessos das músicas de Orfeu e de Canção do Amor Demais haviam aumentado consideravelmente o prestígio de Vinícius junto à turma de Miúcha, que já tinha o privilégio de conhecer de primeira mão as composições de Vanzolini, professor da USP diretor do Museu de Zoologia, grande contador de casos e autor de excelentes sambas, na linha mais tradicional.
Em 1960, Miúcha participou, cantando e acompanhando-se ao violão um espetáculo do Grupo Teatral Politécnico homenagem a Manuel Bandeira amigo da família Buarque, que havia quarenta anos não voltava a São Paulo, onde estudara na Poli e fora sócio fundador do Centro Acadêmico. Por Causa disso, foi entrevistada na televisão, provocando forte reação de dona Maria Amélia, que preferia ter os talentos dos filhos limitados às reuniões da Rua Buri.
Em outubro de 1964 aconteceu a gravação, no colégio Rio Branco, do piloto do programa Primeira Audição, apresentado por Elis Regina e Luiz Chaves, produzido para a TV Record por Horácio Berlinck Neto, João Evangelista Leão e Eduardo Muylaert. Deste espetáculo participaram vários jovens artistas pouco conhecidos, como Chico Buarque, Yvette, Toquinho, Tuca, Nelson Ayres, Taiguara, Luz Roberto Oliveira, Adylson Godoy, Zelão, Hamilson Godoy e outros.
A partir do show original, foram editados os três programas de uma série que durou seis meses e serviu de embrião para o programo O Fino da Bossa, com Elis Regina, Zimbo Trio e Jair Rodrigues. O surgimento dessa nova fornada de músicos foi saudado por alguns críticos, entre eles Moracy do Val e Thomás Souto Correa, como a “nova Bossa Nova”, e por outros como uma primeira geração pós-bossa, por ela muito influenciada, porém sem fortes compromissos com a mesma.
A cantora Yvette foi talvez quem permaneceu mais fiel à Bossa Nova, embora não se tornasse suficientemente conhecida fora de São Paulo. Revelada nos shows universitários, participou de vários espetáculos do Paramount e das reuniões do grupo de Theo, César e Maricene. Trabalhou com Edu Lobo, tanto em noitadas no Teatro Arena como em seu programa Edu Bem Acompanhado, na TV Tupi, produzido por Goulart de Andrade. Foi a primeira intérprete de Preciso Aprender a Ser Só, com arranjo de Oscar Castro Neves, num show do Arena, assim como de várias outras composições de Marcos e Paulo César Valle.
Era presença permanente, ainda, em dois programas de TV também na Tupi, importantes não só por seu padrão musical mas também pela pesquisa de novos formatos para o musical de televisão: Móbile e Poder Jovem, ambos de responsabilidade de Fernando Faro. Aliás, a essa altura não faltavam programas de televisão nos qual a Bossa Nova predominasse como o Gessy às Nove e Meia, de Eduardo Moreira, o Musical Três Leões, de Walter Arruda e Cecil Thiré, que chegou a apresentar várias vezes o próprio João Gilberto como figura central, ou o Julio Rosemberg Show, no qual a parte “um-banquinho-e-um-violão”, cabia ao compositor e violonista Sérgio Augusto.
Maricene Costa cantava na noite, acompanhada pelos conjuntos mais modernos da época; participou dos circuitos e espetáculos universitários e mais tarde foi para os Estados Unidos, sob contrato com uma gravadora especializada em jazz. Foi parceira de Vera Brasil, com quem chegou a ganhar o segundo prêmio num festival da TV Excelsior. Sua casa foi uma das bases do grupo de Bossa Nova de São Paulo que se rebelou após a célebre frase de Vinícius.
Não dá para falar da Bossa Nova paulista sem citar três cantoras cariocas que marcaram o período com participações importantes, em boates, teatros e discos: Alaíde Costa, Claudete Soares e Marisa Gata Mansa. Claudete cantava no início de carreira no Rio, no Hotel Plaza, dividindo as atenções com Sylvinha Telles. Quando esta se casou com Candinho, deixou Claudete sozinha no Plaza. “Ali foi o berço da Bossa Nova”, garante ela, que participou de vários shows no Rio, inclusive na Faculdade de Arquitetura. “Ficava enlouquecida, porque adorava esse tipo de música, mas tinha que voltar para o estúdio da Rádio Nacional para gravar baião. Eu dizia para mim mesma : não é isso o que eu quero.”
Quando Agostinho dos Santos a viu cantando no Plaza, convenceu-a a ajudá-lo a “levar esse movimento para São Paulo”. Começou na Baiúca, mas logo se indispôs com o proprietário por motivos de repertório e passou a cantar no Cambridge, de onde diz ter as melhores lembranças, “porque lá o pessoal ia por causa da música, os freqüentadores eram os próprios artistas”, segundo ela. Mas foi também musa do João Sebastião Bar, onde era considerada a pocket singer dos pocket shows.
Foi no bar do Cambridge que formaram um quarteto vocal — ela, Alaíde, Pedrinho Mattar e o contra baixista Matias Matos — a que denominaram Os Bossais, de início por brincadeira, e mais tarde resultando num disco que se tornou uma raridade para os colecionadores.
Já Alaíde Costa, que havia sido revelação do ano no Rio, em 1957, e cooptada por João Gilberto para incluir três músicas de Bossa Nova em seu primeiro LP em 1959, conquistou o público paulista a partir do show Festival Nacional da Bossa Nova, um ano depois, no Teatro Record. Em 1962 casou-se com o radialista Mário Lima e foi morar de vez em São Paulo, onde teve grandes sucessos em boates, festivais e teatros, com alguns pontos altos como o show O Fino da Bossa, do Paramount, e o recital Alaíde Alaúde, no Teatro Municipal, sob a direção do maestro Diogo Pacheco. Como compositora Alaíde fez músicas e letras, inclusive em parceria, entre outros, com Tom Jobim e Vinícius.
Quanto a Marisa, ou Gata Mansa, de origem no jazz, no Rio de Janeiro, foi crooner do Copacabana Palace, intérprete destacada do repertório de Dolores Duran, e estrela de shows do Beco das Garrafas, Tendo casado com o pianista e arranjador César Camargo Mariano, mudou-se para São Paulo, onde viveu durante sete anos. No período teve algumas experiências teatrais, entre as quais um musical com Lennie Dale e um espetáculo no Arena, com Caetano Veloso e Taiguara.
Impõe-se pelo menos a citação de outras personalidades femininas que tiveram passagem marcante naquela época, em São Paulo, como a violonista e compositora Vera Brasil, autora de O Menino Desce o Morro, gravação de sucesso de Geraldo Cunha, e Tema do Boneco de Palha, e que participou de espetáculos com Claudete, Pedrinho Mattar e conjunto no João Sebastião, ou a cantora Márcia, que alcançava grande êxito no Estão Voltando as Flores, inclusive apresentando interpretações novas de músicas de Johnny Alf.
No segundo semestre de 1959, ano do primeiro LP de João Gilberto, Tom Jobim apresentava, na TV Paulista, o programa O Bom Tom, no qual apresentava os principais nomes do movimento carioca e abria oportunidades para autores e intérpretes da Paulicéia. Na mesma época, boates como Michel, Oásis e Baiúca anunciavam novas programações baseadas no repertório e no estilo da Bossa Nova. Na Cave, por exemplo, eram anunciados, além de um cantor de rock, Ana Lúcia, Johnny Alf e trio e a participação especial de Booker Pittman, que compunha à época, com Hector Costita e Enrico Simonetti, um trio de ouro de músicos estrangeiros radicados em São Paulo e que tiveram participação no movimento.
Em setembro de 1959, Vinícius de Moraes teve um encontro com os alunos da Politécnica, superlotando o maior dos auditórios da faculdade e resultando numa crônica que tem sido incluída em suas antologias. Mais até do que poesia, mulher e política, temas da divulgação do evento entre os universitários, foi o novo movimento musical que motivou maior número de perguntas e debates.
O modo diferente de João cantar e de tocar violão, o futuro da Bossa Nova sendo perene ou um mero modismo, a possibilidade de Norma Bengell ser enquadrada como cantora ou não, tudo sinalizava por uma grande valorização do tema pela juventude de então. O evento foi encerrado com o poeta tirando do bolso o manuscrito da letra de uma música nova que ele ainda não decorara e que cantou, acompanhado por Caetano Zama, em dueto com Mariana Pôrto de Aragão, uma “cantorinha promissora”, para quem ele previa uma bela carreira na Bossa Nova. A canção era Samba em Prelúdio, e Mariana abandonou pouco depois a carreira, para casar-se com seu empresário e dono da boate Cave, Jordão de Magalhães.
São Paulo sempre se caracterizou pelo alto nível de seus instrumentistas, e o movimento da Bossa Nova trouxe no mínimo o resgate do violão e a revalorização do trio piano/baixo/bateria. Para não retroceder demais no tempo, pelo menos desde os áureos tempos do Teatro Brasileiro de Comédia e da Cinematográfica Vera Cruz, criados por Franco Zampari, São Paulo passou a ter um local onde se praticava permanentemente o jazz e a música nacional por ele influenciada.
Essa base era o Nick Bar, de Joe Kantor, vizinho ao TBC e ao qual havia acesso direto através da sala de espera do teatro. Ponto de encontro de artistas, intelectuais e socialites, ali se apresentaram os principais pianistas da década de 50 — basta citar, por exemplo, Dick Farney, que inclusive gravou, em homenagem a ele, uma depois célebre canção, de autoria de Garoto e J, Vasconcelos.
Vários foram os instrumentistas que se destacaram durante o período de apogeu da Bossa Nova - digamos, de 1959 a 1964 -, a começar por Johnny Alf, que passara a viver em São Paulo quatro anos antes e que trabalhou em pelo menos uma dezena de casas noturnas, entre as quais Cave, Baiúca, Michel e Stardust. Em 1961, quando voltou para o Rio de Janeiro, acabara de gravar seu primeiro disco, que incluía Rapaz de Bem, Ilusão à Toa e O que É Amar.
Naquela época despontava no Rio de Janeiro uma das mais importantes figuras da música brasileira: o violonista Baden Powell. Antes mesmo de o movimento da Bossa Nova existir, Baden já era um conceituadíssimo e exímio instrumentista. Seu violão transcende a qualquer movimento musical, mas o advento da Bossa Nova trouxe a Baden Powell a possibilidade de compor e tocar com e para músicos de alta qualidade.
Foi um dos grandes parceiros de Vinícius de Moraes, com quem escreveu clássicos como Samba da Bênção, Pra que Chorar, Formosa, Berimbau, Canto de Ossanha e Apelo. Entre inúmeras outras canções, o grande violonista também compôs Samba Triste, com Nilo Queiroz, Lapinha e Aviso aos Navegantes, com Paulo César Pinheiro, Cidade Vazia e Feitinha pro Poeta com Lula Freire.
Na gravação de um disco do compositor francês Michel Legrand, uma certa faixa do disco Sérénades du XXême Síècle, a difícil peça He Antonio não era tocada pelos violonistas espanhóis presentes à gravação, como Legrand queria. “Chamem Baden Powell”, sugeriu um músico da orquestra. Assim foi feito e, uma vez no estúdio, Baden, de primeira, executou o tema exatamente como havia sido escrito, superando mesmo as expectativas do genial Michel Legrand. Depois de alguns anos morando em Paris, Baden voltou para o Brasil. Retornando para mais uma temporada na Europa, escolheu viver uns tempos na Alemanha, Curiosamente, na cidade de Baden-Baden!
Em l964 dois instrumentistas de grande prestígio e vivência na música popular, particularmente em São Paulo, o baixista Luiz Chaves e o baterista Rubens Barsotti, o Rubinho, uniram-se ao pianista Hamilton Godoy para constituir o Zimbo Trio, que chegou a completar trinta anos com a mesma formação, dedicando-se a um repertório coerente, mantendo fidelidade a um padrão musical que mostrou possuir público permanente e chegando inclusive a criar uma escola (o Clam) para a formação musical e aperfeiçoamento de instrumentistas.
Luiz Chaves, nascido e criado em Belém do Pará, acredita que, antes do surgimento da Bossa Nova, já existia um movimento nacional que buscava explorar o bom gosto dentro da música brasileira. Filho de um violinista e uma pianista, Luiz lembra que sua mãe, apesar da formação erudita, mandava buscar álbuns de Fats Waller nos Estados Unidos. “Por minha casa passaram os maiores nomes da música do Rio de Janeiro”, conta. Ele cita, entre outros, Orlando Silva, Os Anjos do Inferno e Lúcio Alves. Enquanto as estrelas ensaiavam dentro de sua casa, as pessoas se acotovelavam do lado de fora para ouvir. “E nós íamos aprendendo...”, confessa.
O compositor Custódio Mesquita foi, durante algum tempo, diretor artístico da PRC5, Radioclube do Pará. Aos treze anos, Luiz Chaves fundou com o irmão Sebastião, conhecido também como o contrabaixista Sabá - outro nome indispensável em qualquer relação de músicos importantes na história da Bossa Nova - o conjunto Gaviões do Samba, inspirado nos Cariocas. Mais tarde, na época do auge da Bossa Nova, Sabá formou com o percussionista Toninho Pinheiro e com o pianista Cido Bianchi o Jongo Trio, de grande êxito inclusive pelos arranjos vocais, posteriormente sucedido pelo Som Três, então com César Mariano ao piano.
O baterista do Zimbo, Rubinho, também cresceu ouvindo música norte-americana, fez parte de vários conjuntos e tocou em inúmeras casas noturnas. Participava intensamente de gravações, na época em que surgiu a Bossa Nova — e ele cita, como exemplo, os discos de Maysa e de Agostinho dos Santos —, graças às quais sustentava o curso de Direito na Universidade Mackenzie. Segundo Rubinho, a Bossa Nova surgiu no Rio, “mas quando chegou a São Paulo, todo mundo estava pronto para participar e participou. Foi tudo muito natural e espontâneo”.
Quanto ao pianista do trio, Hamilton, músico de formação preponderantemente erudita, conta que ele e seus irmãos, nascidos e criados em Bauru, no interior de São Paulo, ouviam muita música em casa, já que seu pai adorava orquestras americanas, como as de Glenn Milier e Tommy Dorsey. Dos artistas brasileiros preferiam como exemplo Carlos Galhardo, Orlando Silva, Dick Farney e Agostinho dos Santos, O programa da Rádio Eldorado Um Piano ao Cair da Tarde era algo obrigatório para eles. Seus irmãos Adylson e Hamilson vêm desenvolvendo suas carreiras profissionais, inclusive como pianistas, confirmando e deixando claras as influências reveladas por Hamilton.
No que se refere à Bossa Nova propriamente dita. o pianista do Zimbo comenta que “a gente estava preparado para ouvir um tipo de música e, quando o disco do João Gilberto apareceu lá em casa, causou reações diferentes. Meu pai se irritava com aquilo, enquanto a gente adorava”.
Paulinho Nogueira foi um dos primeiros a despontar. Em São Paulo desde 1952, pensava ser desenhista publicitário, até que descobriu seu verdadeiro caminho e foi trabalhar como violonista na boate ltapoã. Segundo diz, “a gente estava sempre tocando nas casas noturnas, e só curtia mesmo a música quando acabava a função; aí é que a coisa esquentava...”. Professor de violão, não apenas se apresentava nos espetáculos do circuito universitário, como fazia “escada” para os artistas mais jovens, quando necessário.
Theo de Barros começou tocando jazz na boate de jovem-guarda Lancaster, na Rua Augusta, alternando com um conjunto de rock. Tocou em várias casas noturnas, como Cambridge, Baiúca, João Sebastião e Ela, Cravo e Canela, Participou do grupo, das reuniões e das noites de Bossa Nova, e dirigiu Historinha, já na fase do Teatro Paramount, tendo preparado, para este espetáculo, arranjos que incluíam trompetes e violinos para o conjunto de Erlon Chaves.
O cantor, violonista e compositor Sérgio Augusto estudava Química Industrial e trabalhava na noite para ajudar a custear os estudos. Freqüentador da turma carioca da qual nasceu a Bossa Nova, seu estilo de tocar violão chamava a atenção, assim como suas primeiras composições, dentre as quais Barquinho Diferente, gravada por Claudete Soares, Milton Banana Trio, Zimbo e outros. Fez parte do conjunto de Pedrinho Mattar quando este se apresentava com Claudete, no Ela Cravo e Canela e no João Sebastião Bar, tendo inclusive ali substituído Vera Brasil, Sérgio Augusto participava do circuito universitário e se apresentava no Le Barbare e no Estão Voltando as Flores.
Segundo seu depoimento, “inesquecíveis eram os fins de noite na boate Bon Soir, quando todos os músicos deixavam seu trabalho e iam ouvir o violão e as canções de Walter Santos, ídolo de todos nós naquela época, sob cujo samba o sol nascia lá para os lados da antiga Praça Roosevelt”.
Walter Santos, também baiano e também de Juazeiro, fez parte do back vocal do disco pioneiro de Elizeth Cardoso, ao lado de Tom Jobim e de João Gilberto, e foi presença do maior destaque nos primeiros anos da Bossa Nova em São Paulo, assim como outro conterrâneo, Geraldo Cunha, igualmente violonista, compositor e cantor, que participou do show O Fino da Bossa, e chamava público em inúmeras casas noturnas entre as quais o Le Barbare, o Jogral e, anos depois, o III Whisky.
Entre tantos outros, Edgard Gianullo sempre teve pendores para os arranjos vocais, tendo liderado vários conjuntos com clara influência do jazz e da Bossa Nova, o mais recente dos quais o Quatro por Quatro. Participou da orquestra de Simonetti e acompanhou inúmeros cantores da moderna música popular brasileira. Apaixonado por música desde os catorze anos, em particular dos Anjos do Inferno, a maior diversão de sua turma era fazer novos arranjos para músicas antigas. “Aparecia até a Carmen, de Bizet, em ritmo de Bossa Nova”, comenta, citando inclusive que Vinícius e Tom costumavam freqüentar as reuniões desse grupo em São Paulo.
Mesmo polarizada pela velha Praça Roosevelt, a Bossa Nova paulista a partir de 1961 passou a ter fora dela, não longe, porém em duas direções opostas, as casas noturnas mais marcantes em matéria de música popular brasileira, e de Bossa Nova em particular.
Para os lados da Vila Buarque, próximo ao Mackenzie e à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU: uma série de bares como o Le Barbare, o Manolo, o Ela, Cravo e Canela e particularmente o João Sebastião Bar, na Major Sertório, dirigido por Paulo Cotrim. Na Avenida Nove de Julho, não longe do Anhangabaú, o bar do Hotel Claridge, que depois virou Cambridge para aproveitar o maior número de letras quando teve de mudar o nome.
Cotrim havia sido diretor artístico da boate Cave, numa época, entre 1959 e 1960, com música de qualidade e shows de bolso que tiveram grande sucesso. Era ligado aos movimentos de juventude católica e dono de uma pensão de estudantes na Rua Sabará, que era ponto de encontro de jovens lideranças intelectuais e artísticas. Anos mais tarde transformou-se em prestigiado cronista de assuntos gastronômicos. Sua proposta era a criação de um novo espaço, especialmente projetado para ser uma casa de música, de shows e de reunião, objetivo que alcançou, tornando-a no mínimo o local mais badalado da cidade.
Foram suas atrações, entre muitas outras, Claudete Soares acompanhada por Pedrinho Mattar, com Sérgio Augusto (violão), Azeitona (baixo) e Hamilton (bateria); o Sambalanço Trio, do pianista César Camargo Mariano, Kleiber (baixo) e Airto Moreira (bateria) Pery Ribeiro; o Sexteto Brasileiro de Bossa Nova, liderado por Theo de Barros; e o Quarteto de Eli Arcoverde. Foi lá, por exemplo, a primeira apresentação pública de Gilberto Gil, então funcionário em São Paulo da Cia. Gessy-Lever.
Entre os locais eleitos pela Bossa Nova, o João Sebastião Bar era, segundo a cantora Ana Lúcia, “uma Ipanema para os paulistas. Lá, na mesma noite, podia-se encontrar Lennie Date, Tônia Carrero, Tarcísio Meira e Glória Menezes ou a Condessa Pereira Carneiro”. Segundo ela, a maior atração da casa eram as “canjas”, além dos dois ou três conjuntos contratados e uns quatro cantores. “O Jô Soares, por exemplo, sempre aparecia para tocar bongô ..“.
Já a história do Cambridge relataria principalmente as diferenças na composição dos conjuntos que ali se apresentavam, num clima mais calmo, para um público mais voltado à qualidade musical. Entre outros, deve-se lembrar o conjunto de Manfredo Fest, com Matias (baixo) e Heitor (bateria); o de Pedrinho Mattar, com Azeitona (baixo), Toninho Pinheiro (bateria) e Papudinho (pistom) acompanhando Claudete, e o da própria, acompanhada por Walter Wanderley, no quarteto vocal que formaram com a participação de Alaíde Costa.
Logo a Bossa Nova começou a ser exportada. A Odeon lançou João Gilberto nos Estados Unidos através de uma montagem de gravações intitulada BraziI’s Brilliant. Em 1961, houve no Teatro Municipal do Rio um espetáculo de jazz com os músicos americanos Coleman Hawkins, Curfis Fuiler, Zoot Sims e Herbie Mann, entre outros. Fascinados com as possibilidades infinitas de improviso da Bossa Nova, eles voltaram para os Estados Unidos com algumas músicas para serem gravadas.
O trompetista Alberto Castilho lembra que, em 1961, foi um dos músicos convidados a tocar no primeiro festival de jazz da América Latina, em Punta del Este, no Uruguai. O conjunto era formado por ele, Juarez Araújo (sax tenor), Paulinho Ferreira (sax barítono), Bill Horne (trompete) Pedro Paulo (contrabaixo), Sérgio Mendes (piano), Tião Neto (contrabaixo) e Oswaldinho Oliveira Castro (bateria). Participavam Argentina, Brasil, Uruguai e Chile. “Até o conjunto argentino já tocava Bossa Nova”, lembra Alberto, contando também que durante as apresentações do festival só se tocava jazz, mas nas jam sessions que aconteciam depois, nos bares de Punta del Este, a Bossa Nova era o grande acontecimento.
Fonte: Revista Caras - Edição Especial de Julho de 1996.
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